Quantcast
Channel: Crítica Daquele Filme
Viewing all articles
Browse latest Browse all 179

Clube de Compras Dallas (Dallas Buyers Club)

$
0
0
Sobrevivendo, apesar da ignorância dos homens e do sistema.

Novas audiências podem não saber, e as mais antigas talvez tenham esquecido, mas há três décadas atrás o vírus da AIDS era sinônimo de tudo que existe de pior sobre a face da Terra. A doença era tida como maldita, uma sentença que condenava o doente não só a morte, mas também a injúria, preconceito e difamação da sociedade.

Muita coisa mudou desde então. Com os avanços da medicina e o correto entendimento da doença (sendo o Brasil um dos pioneiros destes estudos), hoje é possível que o individuo diagnosticado como soro positivo tenha controle dos sintomas, e consequentemente mais qualidade de vida. Ou seja, a AIDS já não debilita e mata como antigamente. Mas o caminho até aqui foi tortuoso.

E buscando lembrar disso, ou mesmo não esquecer, o filme "Clube de Compras Dallas" remonta a história real de Ron Woodroof, homem que poderia ter sido um qualquer, mas que se transformou em uma pessoa melhor depois de diagnosticado.

Woodroof era o típico caipira de Dallas. Vivia de montarias, apostas, álcool, drogas e sexo, quase sempre desprotegido. Quando a AIDS alcançou seu pico de mortalidade, o grupo mais afetado foi o dos homossexuais. Na época, quem ficava doente era automaticamente enquadrado dentro do grupo. Existiam então dois preconceitos: estar contaminado com o HIV (no início, médicos mal tocavam os pacientes) e também o desprezo por serem descobertos homossexuais. Mas Woodroof era hétero. Ele mesmo carregava a homofobia como uma hereditariedade sulista, o que tornou sua descida ao inferno ainda mais dilacerante.



No entanto, aparentemente, conceitos e crenças se transformam completamente quando não se têm mais nada a perder. O homem queria se curar, ou pelo menos sobreviver mais um momento. E para isso ele precisava de conhecimento, e consequentemente necessitava da ajuda de outros como ele. Mas toda informação divulgada pela imprensa ou centros médicos era, em totalidade, confusa e equivocada. Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo. A única coisa certa era que a AIDS não tinha cura

Sendo assim, Woodroof buscou por soluções na linha de frente. Locais independentes onde o problema era realmente combatido, e não apenas deliberado. Depois de conhecer melhor as características do HIV, ele estava apto a prestar um valoroso serviço, e se o mesmo ganhasse algum reembolso para se manter, que mal teria? Woodroof não era santo, longe disso na verdade, mas ajudou muita gente.



O ponto mais relevante discutido em "Clube de Compras Dallas"é a falta de escrúpulos criminosa da industria farmacêutica, que se revelou em conluio com médicos e a FDA(Food and Drug Administration), órgão governamental que controla e aprova todo e qualquer medicamento comercializado nos EUA. Eles padronizaram o tratamento da doença com um produto específico, o AZT. Sem competidores, o remédio gerava lucro, enquanto sua eficácia era simplesmente ignorada. 

O fato é que o AZT, canonizada como a única droga capaz de tratar a AIDS, tentava, erroneamente, eliminar a doença a qualquer preço, se esquecendo de combater os sintomas, como a baixa imunidade - que no final era o que realmente matava. Liberada inicialmente de forma controlada e burocrática, e envolta por lendas milagrosas, de que seria o elixir da vida que todos almejavam, o medicamento foi também vendido ilegalmente e usado de maneira errada por pacientes mais desesperados.

Por ser altamente tóxico, o AZT despencava ainda mais a resistência de seus usuários, e muitos morreram por isso. Só que o grande problema era que, por todo o mundo, estudos apresentavam outras substâncias mais eficientes no combate da doença. Elas visivelmente fortaleciam os enfermos, só que nenhuma dessas substâncias eram aprovadas pela FDA.

E diante de uma fresta na lei, Woodroof conseguiu "comercializar" estes remédios. Ele viajou o mundo atrás do que havia de melhor no tratamento da AIDS, repassando isso para outros "compradores", que na verdade se tornariam sócios deste "Dallas Buyers Club". Nem é preciso dizer que a ganância do homem, disfarçada de justiça, interferiu.



Resumidamente, "Clube de Compras Dallas"é um filme importante, não só por sua incrível e dramática história real, mas também por sua qualidade técnica. O roteiro da dupla Melisa Wallack e Craig Bortené incisivo ao focar os efeitos devastadores da AIDS, e também as consequências geradas pela ignorância do homem e do sistema. Em contrapartida, o texto engrandece as vitórias de seus personagens, e de maneira simbólica imortaliza estes heróis. Uma narrativa estupenda, carregada de veracidade.

Mas o que faz desta uma produção cinematográfica acima da média é a atuação fenomenal do elenco, encabeçado pelo magricela Matthew McConaughey (que perdeu 22 quilos para o papel). O ator texano, que vem realizando ótimos trabalhos nos últimos anos (vide "Killer Joe", "Bernie", "Mud", "O Lobo de Wall Street" e "True Detective") parece ter descoberto, com honestidade dilacerante, a realidade de seu personagem. O raquítico Woodroof parece tão patético no começo, que algumas risadas nervosas são inevitáveis. Mas sua transmutação, que pode ser qualificada como no mínimo improvável, é algo magistral orquestrado por McConaughey. Ele se reinventa a cada minuto diante de nossos olhos. Cena após cena, somos compelidos a nos atentar em todos os trejeitos do ator, a cada palavra dita com total compenetração. É ver para crer.

Outro destaque é Jared Leto ("Requiem Para um Sonho"), que interpreta o transgênero Rayon. O americano se afastou por um tempo de sua banda "30 Senconds to Mars" para voltar ao cinema (ele não atuava há mais de cinco anos), e podemos dizer que fez uma ótima escolha. Leto desaparece por de trás da maquiagem, perucas, voz fina e escaras de seu personagem, e protagoniza alguns dos momentos mais dramáticos da fita. Tanto Leto quanto McConaughey faturaram estatuetas no Globo de Ouro deste ano. 

Enfim, "Clube de Compras Dallas"é um filme que deve ser visto. Como arte o trabalho apresenta méritos indiscutíveis, e como mensagem, somos compelidos a conhecer melhor uma realidade cruel, de mulheres e homens debilitados e segregados, que lutaram sozinhos contra monstros. Eles foram os primeiros a exigir alguma mudança, que apesar de tardia, chegou. Como disse Matthew McConaughey ao receber seu Globo de Ouro: "Esta não é uma história sobre estar morrendo, e sim sobre continuar vivendo." 



Clube de Compras Dallas/ Dallas Buyers Club: 2013/ EUA/ 117 min/ Direção: Jean-Marc ValléeElenco: Matthew McConaughey, Jennifer Garner, Jared Leto, Denis O'Hare, Steve Zahn, MIchael O'Neil, Dallas Robert.


Viewing all articles
Browse latest Browse all 179

Trending Articles